Em rima, versos, cordéis, que todos pudessem ler
E dar boas gargalhadas na alegria de viver
Hoje eu quero escrever, sobre um bicho em extinção
Era muito autoritário, de leste, oeste e Sertão
Com desculpa esfarrapada desde o tempo de Adão
Uma cultura que houve sem Deus e a criação
Quando a desobediência fez cair em tentação
Os dois comeram os frutos, mas o que disse Adão?
Foi a mulher quem me deu, ela quem primeiro viu!
Jogou toda a culpa em Eva, foi um verdadeiro Biu.
Eva não se defendeu e toda a culpa assumiu”.
Luzia Bezerra da Silva, Itatuba, Paraíba.
É também através dos versos, como
este acima, que dona Lita, como é conhecida a agricultora Luzia Bezerra Silva,
da comunidade Serra Velha, em Itatiuba, na Paraíba, reflete sobre a situação de
opressão que muitas mulheres ainda sofrem e a importância de que elas não se
deixem ser tomadas por essa situação. Reflexão também feita pela agricultora
Maria Madalena Oliveira Leite, de Montes Claros, em Minas Gerais, conhecida
como dona Nenzinha. “A gente às vezes trabalha mais que os homens porque
sabemos que o que a gente faz hoje não é só ajuda, a gente trabalha em tudo.
Tem gente que diz que mulher é fraca, mas não tem isso de fraqueza não, mulher
é forte e inteligente”, diz.
Mulheres como dona Lita e dona
Nezinha conhecem seus direitos e passam a se reconhecer como agricultoras
experimentadoras e protagonistas da construção da convivência com o Semiárido.
Mas nem sempre foi assim e os desafios ainda são muitos para serem superados.
No entanto, esse cenário vem mudando, e isso se dá pela iniciativa e luta das
próprias mulheres do Semiárido. “As agricultoras experimentadoras são
referências que já tiveram vidas negadas, mas que foram quebrando a negação e
descobrindo o mundo a partir do conhecimento delas que são hoje experimentadoras,
são guerreiras do Semiárido e suas histórias são importantes para outras
mulheres”, explica Cristina Nascimento, coordenadora da Articulação Semiárido
Brasileiro (ASA) pelo estado do Ceará.
A luta diária das mulheres na
construção e desenvolvimento de suas regiões não é nova, nem de agora. As
mulheres sempre tiveram um papel importante na construção da sociedade. No
Semiárido, por exemplo, elas sempre foram as principais responsáveis pela
garantia da água e alimentação da família. Era das mulheres o trabalho de
buscar água nos barreiros e açudes, muitas vezes acompanhada das crianças,
enquanto os homens trabalhavam no roçado. Essa realidade do Semiárido tem se
transformado, principalmente pela organização das agricultoras e agricultores
da região e de organizações da sociedade civil que tem convivido com o
Semiárido ao invés de combater à seca. Esse processo tem colocado em prática,
por exemplo, a ação da ASA, de descentralização e estocagem da água na região,
a partir de tecnologias sociais, como as cisternas de placas, e da valorização
do conhecimento das agricultoras e agricultores. “É importante pensar a
perspectiva da mulher e de sua importância para a o Semiárido, mas também de
extrapolar a relação da importância a partir apenas das tecnologias, de pensar
na relação das pessoas com o seu lugar. As mulheres no seu processo produtivo
muitas vezes não são reconhecidas. Tem jornadas triplas de trabalho, pois
acordam mais cedo, cuidam do quintal, da casa, do roçado, dos animais e às
vezes elas mesmas não enxergam tudo isso como trabalho”, pontua Cristina.
Com essa nova realidade, as
mulheres continuam exercendo um importante papel no desenvolvimento da região.
Experimentam formas e práticas de convivência com o Semiárido a partir de sua
produção, do beneficiamento dos alimentos, da comercialização, e percebem a
importância de sua organização. “Elas vão percebendo seus conhecimentos e
experiências que passam de geração em geração. Quando chegam as inovações de
tecnologias, como a primeira água para consumo e a segunda água para produção
de alimentos, isso se conecta com as experiências e conhecimentos das mulheres
e causa mudanças incríveis para a vida delas”, diz Glória Araújo, coordenadora
da ASA pelo estado da Paraíba.
O quintal das casas é um dos
lugares em que as mulheres estão mais presentes, é neles que as mulheres
experimentam suas práticas e inovações. Plantas medicinais, hortaliças,
pequenos animais, flores, entre outras produções compõem os quintais. Mas elas
não trabalham apenas nesse arredor de casa enquanto se faz o almoço. Elas
trabalham e se dedicam ao quintal também porque buscam os alimentos saudáveis
para toda a família, porque tem esse cuidado com a alimentação. “Eu fico feliz
em saber que toda a minha família tem uma alimentação saudável, mas não só a
gente, mas minha comunidade, minhas vizinhas, minhas amigas da cidade que
compram minhas hortaliças”, conta dona Lita.
Mas para conquistar essa
felicidade em partilhar sua produção, dona Lita teve que lutar contra muitas
adversidades. E foi experimentando, através de um sistema de irrigação por
gravidade, que ela mesma produziu, e com a água armazenada na
cisterna-enxurrada, que passou a produzir suas hortaliças e a partilhar com as
vizinhas, até enxergar o potencial de comercialização que tinha. Mas teve que
driblar o preconceito do marido, que não queria ver a mulher na feira, que para
ele era lugar que só tinha homem. “Ele é cortador de carne e tem um box na
feira. Um dia peguei meus sacos cheios de hortaliças, pedi pra minha menina
fazer um cartaz com o nome produtos orgânicos e cheguei lá. Ele disse que eu
num ia fazer isso, mas eu devagarzinho comecei a vender. Hoje ele também vende
as hortaliças na feira”, conta dona Lita, exemplificando que o preconceito com
o trabalho da mulher ainda é muito forte.
A experimentação vem da prática,
mas não só da agricultura. As agricultoras não só inovam buscando formas de
conviver com o Semiárido através da produção, mas também experimentam do ponto
de vista da organização. “Todas as conquistas que tivemos no campo das
políticas e direitos foram a partir da luta das mulheres. É importante refletir
com elas da importância do espaço coletivo. Elas se encontram, elas veem que o
problema de uma é de outra. Se junta em torno de uma causa que não é minha é da
outra. O espaço coletivo é fundamental para a reafirmação dos direitos a
exigência de efetivação de direitos”, relata Cristina.
Para a agricultora Luciana da
Silva, do Rio Grande do Norte, a organização contribui e fortalece os processos
produtivos. “Eu casei com 14 anos e a vida só começou a melhorar quando eu
entrei e me organizei na associação. Porque aprendi com as outras mulheres como
é importante nós estarmos em todos os espaços produtivos da propriedade criando
e experimentando: na horta, no roçado e na criação. Depois que comecei a
dominar a produção a vida melhorou muito passamos a cultivar para comer e
comercializar”, Luciana da Silva, agricultora do Rio Grande do Norte.
A troca de conhecimentos entre as
agricultoras é muitas vezes o estímulo às experimentações e ao processo
organizativo. Os momentos de intercâmbios de experiências, por exemplo,
metodologia usada pela ASA, contribui para o fortalecimento desse conhecimento.
“A gente vai fazendo os intercâmbios, vai trocando as experiências e vai
colocando em prática, vai experimentando. É por isso que a gente é agricultora
experimentadora”, conclui dona Nenzinha.
Para Glória, os intercâmbios são
momentos de diálogo de agricultora pra agricultora em que se enxerga a força do
que está fazendo. “Essa troca busca também o aperfeiçoamento daquilo que elas
estão inovando, seja no manejo da água, na criação de animais, em como lidar
com os períodos de estiagem. Trocam conhecimento da valorização do patrimônio
genético do Semiárido brasileiro, como com as sementes. Muitas são guardiãs e
não se percebem, elas vão se sentindo fortalecidas a partir do diálogo de agricultora
pra agricultora”, explica Glória.
Encontro Nacional - Mais de 100
mulheres agricultoras de todos os estados do Semiárido estiveram reunidas nos
dias 23 e 24, em Lagoa Seca, na Paraíba, durante o I Encontro Nacional de
Agricultoras Experimentadoras, com o lema Celebrando conquistas na trajetória
da ASA. O objetivo do encontro era de valorizar e dar visibilidade ao
conhecimento e as capacidades das mulheres agricultoras e suas formas de
inserção na organização do trabalho da agricultura familiar, além de construir
coletivamente caminhos para superação das situações de desigualdade. As
agricultoras voltam para suas comunidades após o encontro mais fortalecidas e
com novos conhecimentos, a partir da troca de experiências que vivenciaram.
Catarina de Angola – Asacom
Com a colaboração de Mariana Reis e Monyse Ravena
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